Foram vítimas de maus tratos e violação mas tiveram de continuar a viver próximo do criminoso.
O passado voltou sob a forma do medo e as feridas de
uma infância sofrida e que há muito pareciam fechadas tornaram a abrir.
Maria, nome fictício, trancou mais uma vez todas as portas e janelas de
casa em Santa Maria da Feira. Escondeu-se na escuridão do quarto tal
como fez quando ainda era uma menina e voltou a procurar o conforto dos
braços da mãe nas noites em que a insegurança a ataca e o homem que um
dia lhe tirou a inocência lhe invade os sonhos.
Tinha
apenas oito anos quando foi abusada pelo homem da moto - Leonardo, um
construtor civil, com 55 anos, que violou mais de 30 crianças e que está
a cumprir 25 anos de cadeia. Hoje, mais de dez anos depois, vive na
casa em frente à sua um outro predador, Américo ‘Nicha', de 68 anos,
também ele já condenado a dois anos de prisão. Foram outras as crianças
abusadas, em outros locais e em outras datas. Mas sempre que Maria olha
para o vizinho volta a sentir a repulsa e o nojo que as mãos de Leonardo
lhe causaram quando tocaram no seu frágil e pequeno corpo de menina.
Pelo País repetem-se os casos - como se não fosse já suficientemente
difícil conviver com as memórias de um passado roubado, muitas vítimas
têm de viver com o inimigo por perto, quase à porta de casa.
AO LADO DO PREDADOR
"É
horrível morar com um homem destes mesmo à nossa frente. Fez a outras
crianças o mesmo que fizeram à minha menina. Sempre que ela olha para
ele, recorda tudo aquilo por que passou. Ela agora estava finalmente bem
e aparece um monstro destes para lhe fazer lembrar tudo outra vez",
contou à Domingo a mãe de Maria.
‘Nicha' é
rejeitado pelos moradores que conhece há vários anos. Poucos são os que
lhe falam desde que foi detido, em Março do ano passado, por importunar
sexualmente quase uma dezena de crianças e recentemente foram lançados
quatro petardos contra a sua casa. Alguns populares falam numa tentativa
desesperada de os vizinhos expulsarem o predador da casa onde está em
prisão domiciliária, até que a sentença transite em julgado, e de
tentarem proteger as suas crianças. Outros atribuem as culpas ao próprio
predador e garantem que aquele apenas quer chamar a atenção.
"O
certo é que um monstro destes não pode viver ao pé de crianças. Ele fez
muito mal às meninas e alguns pais já andaram à procura dele de
pistola".
ESCONDIDA NO QUARTO
Maria
evita a todo o custo ver o abusador. Não quer estar no pátio da casa
onde vive, passa horas refugiada no quarto e sai quase sempre
acompanhada pelos pais. A avó, que durante tantos anos a protegeu,
morreu há três meses e desde então o medo consome ainda mais a jovem.
Mas mais do que temer ser novamente atacada, não quer recordar o
sofrimento que viveu quando era uma criança e pelo qual parece voltar a
passar sempre que vê o vizinho. Lembra-se do dia em que Leonardo a
atacou, a 29 de Janeiro de 2001, junto à escola primária, situada a
apenas 100 metros de casa e mesmo ao lado da fábrica onde a mãe
trabalhava.
A avó não a pôde levar naquele dia, o
violador aproveitou o facto de a menina estar sozinha para a chamar ao
pedir ajuda com a mota. Tinha um problema no motor, disse-lhe ele.
Bondosa, Maria tentou ajudar, mas em poucos minutos o violador
arrastou-a à força para uma mata, rasgou-lhe as roupas, deitou-se em
cima dela e tocou-lhe no corpo até satisfazer os seus instintos sexuais.
Antes de se ir embora deu ainda 100 escudos à criança.
Nos
meses seguintes, Maria rejeitou os amigos, recusou ir à escola e deixou
de comer. Nunca ficava sozinha e permanecia vários dias sem proferir
uma única palavra. Foi seguida por psicólogos. A mãe deixou de trabalhar
durante meses para a acompanhar e os pesadelos terminaram apenas já na
adolescência. Ainda hoje não fala com estranhos e quando anda sozinha na
rua olha para trás, não vá o homem da moto ter voltado.
Na
altura, ‘Nicha' conheceu o drama da menina. Apoiou-a, confortou os pais
e acompanhou todo o julgamento. Tal como todos os moradores da
freguesia, foi solidário com a família, recriminou os actos monstruosos
de Leonardo e garantiu que fazia o que fosse preciso para que a justiça
fosse reposta.
Anos depois deixou de ser o
protector das crianças para se tornar no seu pior pesadelo. Tal como
Leonardo, começou a atacar à porta das escolas. Observava as meninas,
estudava as suas rotinas e escolhia os alvos mais frágeis e que,
normalmente, saíam sozinhas. Depois chamava-as sob o pretexto de que
precisava de uma informação e obrigava-as a verem-no masturbar-se dentro
da carrinha.
Chegava a sentar-se em cima de uma
almofada para que os actos sexuais fossem mais visíveis para as
crianças. Também atacou mães que seguiam com as filhas e gemia para que o
ouvissem. A notícia de que ‘Nicha' era, agora, também ele um predador
chocou toda a freguesia. Foi condenado no final do ano passado a dois
anos e quatro meses de prisão efectiva e ficaram por provar muitos
abusos pois, devido ao trauma, várias crianças não conseguiram garantir
que tinha sido aquele o homem que as atacou.
O
juiz aconselhou-lhe tratamento e recomendou que tivesse juízo. O
abusador recorreu da sentença, pelo que continua em prisão domiciliária.
Apenas pode distanciar-se alguns metros de casa para ir buscar as
cartas à caixa do correio. Dentro de um ano poderá estar em liberdade.
O MEDO MORA PERTO
São
muitas as dores de quem vive paredes-meias com um agressor do passado e
estas meninas não serão excepção no rosário de penas. Mafalda (nome
fictício) tem hoje 24 anos e passou por histórias semelhantes que lhe
endureceram a alma e a fazem temer, mais do que tudo, pelo ser que
carrega no ventre. Também ela foi assediada sexualmente por Leonardo, o
construtor civil que abusou de Maria. Pouco tempo depois de fazer 13
anos, numa tarde em que regressava a casa da escola a pé, foi
interceptada pelo violador, em Vilar de Andorinho, freguesia vizinha da
sua, que a "obrigou a masturbá-lo". Veio a depor contra ele em tribunal,
"apesar dos nervos e do medo imenso".
O
conhecido violador, casado e pai de quatro filhos, foi preso pela última
vez em 2002 mas já tinha sido condenado três outras vezes (em 1986,
1994 e 1998) e de todas elas, sempre que regressava a casa, voltava a
atacar. "Ele agora está na prisão mas morro de medo do dia em que ele
volte, porque serei obrigada a vê-lo e tenho medo que me reconheça". Já a
primeira mágoa é antiga mas igualmente presente na memória.
"Tinha
uns sete, oito anos e comecei a ajudar uns tios meus, que eram como uns
pais para mim, a tomar conta da filha deles. Estava a adormecer a bebé
quando ele chega. Resolvo sair do quarto para ele poder descansar mas
ele chama-me. Põe-me no meio das pernas dele e começa a pressionar-me as
partes íntimas, a magoar-me. Percebi logo que era uma coisa errada
porque ele disse-me no fim que se contasse a alguém me matava a mim e
aos meus pais".
Com medo, Mafalda calou a
história e aguentou "durante um ano" abusos semelhantes. Com medo,
chorava à noite, chorava de dia, chorava pelos cantos da casa sem que
alguém percebesse a tristeza. Um dia, o tio deixou de a chamar e Mafalda
respirou de alívio. Continuou a vê-lo e a lembrar-se de "todo o horror.
Vê-lo era lembrar-me de tudo vezes sem fim, era confrontar-me com o que
tinha acontecido. Uma vez disse-me que um dia eu ia ser dele".
Como
se não bastasse o caos emocional que viveu até à entrada na
adolescência - e o confronto com duas pessoas que abusaram da sua
infância e fizeram temer o futuro - veio a descobrir, há seis anos, que o
tio fez o mesmo à irmã mais nova quando viu "um raio de sangue na
fralda" e o segredo veio à tona. A mulher dele "chamou-nos mentirosas,
virou-se contra nós e a nossa outra tia também. Chegaram a meter
parafusos no carro da minha mãe, a oferecer-nos pancada. O pior é que
nos temos de cruzar com eles na rua, vivemos com o inferno à porta".
MOTORISTA DA JUNTA
No
mesmo mapa mas muitos quilómetros a sul a história repete-se. Entre
2009 e 2010, A.P, motorista da Junta de Freguesia de Outeiro de Cabeça,
em Torres Vedras, abusou de pelo menos oito meninas, entre os sete e os
treze anos de idade - duas delas são suas sobrinhas netas - aproveitando
a missão de as conduzir entre a casa, na aldeia de Olho Polido, e a
escola que frequentavam. Tocava-lhes quando entravam no autocarro, que
mais à frente parava - logo cedo, pela manhã, para consumar o crime. As
mais vulneráveis e filhas das famílias mais desfavorecidas da terra -
estratégia que usou para tentar ficar impune - eram as escolhidas.
A
PJ apurou oito casos mas no início de Abril de 2011 o homem, pai de um
ex-futebolista da Selecção Nacional, continuava a viver a poucos metros
das vítimas, paredes-meias com as crianças que despia e sujeitava a
diversas carícias de cariz sexual, ali perto dos olhos de todos mas sem
que alguém desconfiasse. Hoje, na aldeia, todos sabem dos crimes
sexuais. E muitos dos vizinhos são pais das crianças que molestou - e
que com ele são obrigados a cruzar-se, ali entre o café e o
supermercado, ali entre a vida de todos os dias, mesmo sabendo o que
aconteceu a caminho da escola da freguesia. Quando o caso foi denunciado
ao CM por familiares das vítimas, um deles confirmou que o antigo
motorista (foi despedido depois de a Junta ter conhecimento dos abusos)
continuava a frequentar a casa das sobrinhas-netas.
"Como
vivemos perto um do outro ele ainda vem cá, mas elas nem gostam muito
que eu lhes diga para o cumprimentar porque ficam acanhadas", comentou
então um dos familiares, confirmando a presença do agressor em sua casa.
Aos outros vizinhos, A.P., casado, com dois filhos, deixou de dirigir a
palavra. Por vergonha, dizem uns. Por medo, preferem outros. O que
ninguém sabe ou quer responder é como é que tudo aconteceu ali tão
perto, sem que eles não percebessem.
O INFERNO TÃO PERTO
Alice
tem mil dores que desapareceram do corpo mas permanecem nos olhos. É
com eles que garante que ele não está por perto - mas ele está -, é com
eles que controla a retaguarda. Aquele homem com quem abraçou uma vida
comum há 26 anos "e que parecia um homem bom virou um demónio" depois
dos filhos nascerem. Virou-lhe a vida do avesso, destruiu-lhe as
expectativas de uma vida em paz.
"Deixou de ser a
pessoa por quem me tinha apaixonado e com quem acreditava ficar para
sempre. Começou a espancar os filhos e eu não conseguia demovê-lo,
batia-lhes e eu pouco conseguia fazer". Com as forças a escorregarem-lhe
do corpo, a empregada doméstica agora sem trabalho tentou muitas vezes
fazer de escudo entre as crianças e o pai mas a tarefa era inglória.
"Ao
mesmo tempo ameaçava-me e gritava coisas obscenas, chamava-me nomes que
ninguém merece ouvir, ninguém merece ser tratada assim, ver os filhos
sofrer assim". A pressão física e psicológica durou anos que pareciam
séculos para as três vítimas de Rui (nome fictício) que sempre se
debateram com uma questão fulcral: a falta de habitação. "Temos uma casa
pedida à Câmara há dez anos mas até agora nada", reclama Alice, do alto
do sofrimento. Há três, apoiada por uma psicóloga e uma assistente
social, conseguiu subarrendar um quarto dentro da casa de outrem -
também na Cova da Moura, onde moravam em família - para onde foi com os
dois filhos e onde, há pouco, se juntaram mais dois inquilinos.
"A
minha irmã foi agredida pelo marido e saiu de casa com a bebé, de um
ano. Estamos os cinco a morar no mesmo quarto", na mesma área onde os
dois homens as maltrataram. "O meu ex-companheiro mora aqui muito perto,
já o encontrei porque esta zona não é muito grande. Ele não me faz nada
mas aquilo que mais queria era morar mais longe disto, morar mais longe
de todo o inferno que passei". Porque a cada passo recorda a vida que
teve mas não sonhou.
Em Corroios espera-se que o
inferno não volte. O inferno chama-se Cláudio e foi morar para um bairro
do Seixal com a companheira e a filha desta há poucos meses. Num sábado
à tarde convidou oito colegas de escola da enteada e vizinhos para irem
ver desenhos animados mas as crianças acabaram a assistir, chocadas, a
um filme pornográfico.
Nessa tarde, Cláudio
manteve conversas de teor sexual, mostrou um vibrador a uma das menores e
explicou como manuseá-lo. As crianças foram salvas por duas colegas que
tocaram à porta. Os pais das vítimas quiseram linchá-lo com um taco de
basebol e, depois de detido provisoriamente pela PSP, aguarda julgamento
em liberdade, com medida de coacção de afastamento do distrito de
Setúbal. Não se sabe por quanto tempo.
Fonte: Correio da Manhã
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/exclusivo-cm/o-inimigo-ali-tao-perto
Sem comentários:
Enviar um comentário